"A pior forma de desrespeitar uma criatura é coisificá-la como algo comestível"
Carlos Naconecy*
* Carlos Naconecy é filósofo graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Fez doutorado também em Filosofia pela PUCRS. Foi pesquisador visitante em Ética Animal na Universidade de Cambridge (UK) e hoje é membro do Oxford Centre for Animal Ethics e do corpo editorial do Journal of Animal Ethics. É autor do livro Ética & Animais (Porto Alegre: Edipurs, 2006).
“A ética animal tem que conseguir se alçar como um campo de reflexão legítimo, constituir-se dentro e fora da academia”, é o que aponta o professor Carlos Naconecy na entrevista que concedeu à IHU On-Line, por e-mail. Ele fala sobre os principais conflitos que o conceito de ética animal vive atualmente e sobre como a bioética pode ser compreendida a partir da relação homem/animal. “Não há diferenças moralmente relevantes entre, digamos, três tipos de mamíferos, cães, ratos e porcos. Mas, mesmo assim, amamos o primeiro, odiamos o segundo e comemos o terceiro”, explica o professor aponta que isso mostra a segregação preconceituosa que há na diferenciação animal que se pratica.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como podemos entender o conceito de ética animal?
Carlos Naconecy – A expressão “ética animal” deve
ser entendida como uma ética, no sentido de reflexão filosófica, a
respeito do tratamento dos animais (não humanos) por parte dos humanos.
Nessa acepção, a ética animal se constitui como um dos ramos da Ética
Aplicada, área da Filosofia que se debruça sobre as questões concretas
que se impõem a nós neste momento da civilização.
IHU On-Line – Quais são os principais conflitos que a ética animal vive hoje?
Carlos Naconecy – Pensando particularmente no
contexto brasileiro, eu diria, em primeiro lugar, que a ética animal tem
que conseguir se alçar como um campo de reflexão legítimo,
constituir-se dentro e fora da academia, ou seja, mostrar que há algo a
ser dito e que merece ser ouvido. Isso significa levar os animais
moralmente a sério, tomá-los em consideração nas decisões privadas e
públicas, enquanto sujeitos, em vez de meros objetos – assim como
fazemos com outros seres humanos.
Atualmente, temos “animais de (panela)” ou “animais para (companhia,
diversão, experimentação, etc.)”, mas não animais como sujeitos morais,
isto é, que demandam nosso respeito. Esse imperativo ainda está muito
distante da consciência moral ordinária e cotidiana. Na maior parte das
vezes, os argumentos e reflexões em prol dos animais são descartados
automaticamente e, quando não o são, o homem médio os classifica como
passionais, sentimentalistas, fanáticos, idiossincráticos, etc.
O ponto fundamental é reconhecer a alteridade dos animais, cuja
reificação (transformação do animal em coisa), instrumentalização
(utilização do animal como meio) ou antropomorfização (transfiguração da
alteridade e especificidade animal) devem ser postas à luz de um devido
crivo crítico. Em suma, em resposta à sua pergunta, o principal desafio
da ética animal atualmente é conquistar seu espaço como área de
reflexão moral genuína e relevante, ou seja, alçar seu estatuto
filosófico.
IHU On-Line – A zooantropologia é uma prática que já existe no Brasil?
Carlos Naconecy – A zooantropologia se debruça sobre
a relação humano-animal, no encontro do animal humano com outro animal
não humano, envolvendo conteúdos da antropologia, zoologia, etologia e
psicologia. A domesticação e o papel dos pets são alguns dos seus
objetos de estudo. Não acompanho de perto a pesquisa nessa área no
Brasil, mas imagino que a zooantropologia esteja ainda muito incipiente
no nosso país, se não inexistente. O que temos são programas de
Zootecnia e Comportamento Animal, e algumas pesquisas com terapia com
uso de animais, e é só.
IHU On-Line – O que a bioética pode revelar sobre a relação homem/animal?
Carlos Naconecy – A função das éticas (zoo, bio ou
outra qualquer) não é revelar ou descrever as relações, mas, antes, a de
avaliar tais relações. Diferentemente do que a etimologia do termo
indica, bioética é interpretada usualmente como ética médica, que se
situa na relação entre médico e paciente, envolvendo questões como a
eutanásia, aborto, suicídio etc. Entretanto, no seu sentido mais
próprio, trata-se da ética da relação entre o humano e outros seres
vivos. Ora, a categoria do vivo é mais ampla que a categoria do animal.
Portanto, as questões de fundo da ética animal se inserem nas reflexões
pertinentes ao valor intrínseco da vida e do viver.
IHU On-Line – Veneramos e mimamos alguns animais, enquanto torturamos e destruímos outros. O que isso nos diz sobre a ética do homem?
Carlos Naconecy – Isso nos diz que o pensamento de
senso comum é preconceituosamente discriminatório e moralmente
inconsistente, com raízes culturais. Por exemplo, não há diferenças
moralmente relevantes entre, digamos, três tipos de mamíferos, cães,
ratos e porcos. Mas, mesmo assim, amamos o primeiro, odiamos o segundo e
comemos o terceiro.
Essa segregação preconceituosa varia entre as diferentes culturas e
as diversas sociedades. Esse fato indica o quão arbitrária e
inconsistente é a razão moral humana quando se volta à categorização do
“outro”, de modo geral, e dos outros membros do reino animalia, em
particular.
IHU On-Line – A academia hoje trata da questão da ética animal? De que forma?
Carlos Naconecy – Vou me permitir citar um trecho do livro “Ética & Animais”, que descreve exatamente esse ponto:
“A questão dos animais se apresenta como um problema aberto para a
Filosofia. E quem escreve sobre animais numa área tão conservadora
quanto a Filosofia corre o risco de parecer ridículo. De fato, falar
hoje de uma ética para os animais é ainda visto com certa suspeição e
até desprezo pelos acadêmicos. É bem verdade que alguns pensadores se
ocuparam isoladamente com esse tema nos séculos anteriores. Também é
muito provável que, ao longo da história do pensamento ocidental, vários
filósofos deixaram de escrever sobre suas posições teóricas quanto ao
status dos animais, a fim de evitar se sujeitarem a tal exposição
constrangedora. Isso hoje ainda vale entre nós em certa medida.
Felizmente, nossa sociedade hoje está mais preparada para considerar
essa ideia. Ao longo dos últimos dois séculos, a atenção social quanto
aos limites éticos da conduta humana em relação aos animais se
restringiu a uma ética minimalista, que se limitava meramente a proibir a
crueldade intencional. Mais recentemente, se percebeu que a maior parte
do sofrimento animal pelas mãos humanas não é consequência de
crueldade, mas da utilização normal e socialmente aceita dos animais.
Constatou-se que a imensa magnitude da miséria animal não deriva de
motivos sádicos, mas de razões nobres e altos ideais, como, por exemplo,
a eficiência na obtenção de alimentos. Somente nas últimas três décadas
os filósofos começaram a tentar estender sistematicamente seus
conceitos ao domínio não humano. O que pode surpreender agora não é o
fato de que um grande número de filósofos esteja reivindicando uma ética
para os animais, mas, sim, o fato de que tais reivindicações ainda
pareçam absurdas para muitos outros”.
IHU On-Line – Que limite deve ser imposto à experimentação com animais?
Carlos Naconecy – Com o passar do tempo, a
sensibilidade de uma sociedade pode considerar como eticamente obsoleta
ou insuficiente uma prática que antes era vista como moralmente
aceitável. O modo livre como a ciência e a tecnologia tratavam os
animais, por exemplo, há algumas décadas atrás, não era considerado como
moralmente problemático. As decisões sobre o uso de animais na ciência
eram, afinal, um assunto de ciência, de cientistas para cientistas. Isso
mudou.
Hoje, os usos e abusos da experimentação com animais são alvo de
crítica por parte da sociedade civil. Essa contestação, envolvendo
público e instituições, pede uma substituição do uso dos animais nos
procedimentos. E a possibilidade de um estudante de anatomia evocar uma
objeção de consciência nessa matéria não suscita mais a noção de tolice
ou disparate. As realidades mudaram, portanto.
Enquanto isso, os animais são utilizados aos milhões anualmente na
pesquisa biomédica, em testes de segurança de produtos comerciais e com
propósitos educacionais. (Segundo a British Union for the Abolition of
Vivisection, 61% dos experimentos em animais são realizados sem qualquer
anestesia!) A ideia que está por trás das justificativas oferecidas
para a experimentação – a propósito, muito conveniente para nós, humanos
– é que um animal é suficientemente semelhante a um humano em alguns
aspectos (exatamente aqueles que justificam a experimentação), mas não
em outros (os que exigiriam nosso respeito moral por ele).
Além do mais, pratica-se uma espécie de terrorismo científico,
propagando-se a ideia de que “se a experimentação com animais for
banida, as pessoas começarão a morrer!” Mas, segundo o Statistics of
Scientific Procedures on Living Animals, do Reino Unido, de 2007, apenas
21% dos experimentos com animais são para testar novos produtos
médicos. Não estamos falando, portanto, de salvar vidas humanas, mas sim
de esbanjar a vida dos animais por motivos fúteis ou inúteis.
Há que se atentar ainda ao fato de que 99% dos animais que são
retalhados não o são para mostrar a circulação sanguínea nas escolas,
nem para observar o efeito de uma substância química no seu organismo –
99% dos animais sobre o nosso planeta são cortados no açougue, não no
laboratório. A pior forma de desrespeitar uma criatura é “coisificá-la”
como algo comestível. A justificação ética a favor da experimentação com
um animal, com todas as suas fragilidades, ainda é mais forte que a
justificação em se alimentar desse mesmo animal. O ponto aqui é muito
simples: se eu posso matar para comer, por que eu não poderia matar para
testar, ensinar e conhecer? A obtenção de conhecimento biomédico é
supostamente mais importante, em termos morais, que a obtenção de um
prazer culinário ou degustativo. Quero dizer que, se você realmente se
preocupa com os animais de laboratório, você deve também se preocupar – e
se preocupar antes – com o destino dos animais de panela.
Fonte: (IHU On-Line)
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