A comunidade jurídica em peso está mobilizada contra o projeto do novo Código Penal, apresentado pelo senador José Sarney
(PMDB-AP). Representantes de entidades ligadas à advocacia, o
Ministério Público do Estado de São Paulo e a Defensoria Pública
paulista organizaram o "Ato em Defesa do Direito Penal: Crítica ao Projeto Sarney".
São 19 entidades contrárias ao texto, que devem formalizar um manifesto
pela paralisação de sua tramitação no Senado. Entre elas, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação dos Advogados de São Paulo (Aasp) e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).
O movimento é liderado, entre outros, pelo jurista e ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior,
professor decano e chefe do departamento de direito penal da Faculdade
de Direito da USP, que faz severas críticas ao projeto. Em entrevista ao
Valor, Reale Júnior é enfático ao afirmar que não há
como consertar o texto. "Só jogando no lixo e fazendo um novo", diz. Por
isso, defende a retirada da proposta da pauta do Senado.
De acordo com o jurista, que participou de várias comissões de
elaboração legislativa para a reforma do Código Penal, - entre elas a de
1984 e a de 1996 -, há erros gravíssimos em todo o texto, que atentam
contra a segurança de toda a população. Entre os muitos vícios, está a
falta de proporcionalidade entre crimes e penas. Ele cita, por exemplo, o
artigo 394, que prevê uma pena de um a quatro anos para quem deixar de
prestar assistência ou socorro a qualquer animal. Por outro lado, a
omissão de socorro à criança abandonada ou extraviada ou à pessoa
inválida ou ferida seria punida com prisão de um a seis meses ou multa.
A entrevista é de Adriana Aguiar e publicada no jornal Valor, 24-09-2012.
Reale Júnior critica ainda o fato de o texto incluir
altas penas para aquele que molestar ou pescar um cetáceo. Pode-se
ficar quatro anos na prisão pela morte de uma baleia ou golfinho. Uma
pena muito superior a de agressão grave cometida contra um humano.
Também há erros, de acordo com Reale Júnior, na
parte que trata de crimes cometidos na área empresarial. O texto inclui,
por exemplo, o crime de corrupção privada, quando algum funcionário
recebe uma vantagem em prejuízo da empresa. Nesse caso, porém, segundo o
projeto, apenas o representante legal pode ser responsabilizado. O que,
para o jurista, torna o dispositivo inaplicável. "Qualquer funcionário
da empresa deveria poder responder."
Eis a entrevista.
Qual o objetivo do ato contra o projeto do novo Código Penal?
Organizamos a manifestação para mostrar força e alertar a nação e o
Senado sobre os perigos desse código. O texto apresenta erros
gravíssimos de termos e conceitos jurídicos. Ao mesmo tempo, cria penas
elevadas e permissões inaceitáveis. De um lado, pune gravemente a
difamação praticada por jornalistas, com penas de dois a quatro anos,
quando a Lei de Imprensa, considerada de cunho autoritário, previa de um
a três meses. De outro, permite a eutanásia praticada
pela família, sem a exigência de um diagnóstico médico, desde que a
vítima esteja em estado terminal. É um projeto com absoluta falta de
nexo.
Existe uma oposição generalizada contra o projeto?
Sim, uma oposição generalizada.
Seria possível consertar o texto?
Não. Só jogando no lixo e fazendo um novo. Não tem outro jeito. É
inconsertável. Por isso, o ato a favor de paralisar o projeto. Rebatem
as críticas dizendo é que eu gostaria de fazer parte da comissão. Como
se eu estivesse preocupado com isso. Já sou decano da Faculdade de
Direito da USP, tenho 68 anos. Eu já fui de tantas comissões neste país.
Eu já tenho meu nome gravado na elaboração legislativa e, se fosse um
bom código, eu estaria aplaudindo. Até porque acho necessária a
modernização do Código Penal. Só que isso tem que ser feito com muito
cuidado.
De que forma isso poderia ser feito?
Existem jovens penalistas de grande competência, que deviam fazer
parte de uma nova comissão. Entreguem isso para os jovens, como fizeram
comigo quando eu era jovem. Eu fiz parte da comissão para reformar a
parte especial do código em 1984, e depois em 1989. Mas todos esses
anteprojetos eram publicados para serem submetidos à apreciação, à
critica, à comissão revisora. Tinham um longo caminho para percorrer.
Não havia bons nomes na comissão?
O ministro Gilson Dipp,
que foi um grande corregedor do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), é
um nome de relevo, mas não é penalista. O relator geral é o procurador
regional da República Luiz Carlos Gonçalves. Alguns advogados tiveram participação pequena. O professor Luiz Flávio Gomes
participou e, em manifestação no seminário do Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais (IBCCrim), disse que foi vencido em grande parte das
propostas. O professor René Dotti se afastou em março
em consequência da forma como se realizavam os trabalhos. Eram
aprovações em massa, muitas vezes por e-mail. Os artigos foram sendo
colocados e resultou nesse código sem nexo.
Não houve consulta popular?
Não ouviram a comunidade jurídica e nem a sociedade em geral. O que
ouviram foram os grupos de pressão, que foram defender a criminalização
de certos atos, de acordo com seus interesses. Mas um código não se faz
assim. A assessoria de imprensa do Senado dava notícia de cada proposta
mirabolante que estava sendo discutida, mas dava em pílulas, ninguém
podia dizer nada porque não conhecia o todo.
O senhor considera que a elaboração do texto foi feita às pressas?
Membros da comissão me contaram que eles recebiam as propostas por
e-mail e tinham três dias para responder, caso contrário tinha-se por
aprovadas. Tanto que a exposição de motivos do projeto é parcial. Cada
um fez o texto do artigo que propôs. Não há uma preocupação com o
conjunto. Isso vai ser uma bomba relógio no aumento da população
carcerária. E feito às pressas para quê? Todos estão intensamente
preocupados. Até porque um Código Penal interfere diretamente na
segurança e na liberdade.
O código aumenta as penas para a maioria dos crimes?
No caso do roubo, por exemplo, a pena foi reduzida de quatro para
três anos. Mas a penas para quem pescar ou molestar um cetáceo é de dois
anos de prisão. Se o golfinho é filhote, são três anos. Se a baleia
morre, a pena é de quatro anos, uma pena muito superior da de quem fura
um olho do outro.
Quais são os outros problemas do projeto?
São tantos. Eu digo para não se assustarem com o absurdo que estarão
lendo. Leia o artigo seguinte. O projeto prevê, por exemplo, que quem
deixar de prestar assistência a um animal em perigo pode pegar uma pena
de um a quatro anos. Porém, quando a omissão de socorro envolve uma
criança abandonada, a pena é de um a seis meses. Não tem coerência.
E com relação aos crimes empresariais?
A comissão resolveu definir novamente gestão fraudulenta, que já tem
uma definição criticada na Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro. No
projeto, a gestão fraudulenta consiste, no artigo 154, em praticar ato
fraudulento na gestão de instituição financeira. Dessa forma, ato
fraudulento pode ser tudo. É, por exemplo, um presidente atestar a
presença da secretaria que faltou durante um mês. Isso é um ato
fraudulento, mas que nada tem a ver com preservação da higidez da
instituição financeira. É completamente genérico. Assusta pela absoluta
impropriedade.
Há outros vícios nessa área?
No artigo 167, a comissão, ao tratar de corrupção privada, define que
comete esse crime o representante legal. Mas esse tipo de crime, quando
alguém recebe uma vantagem em prejuízo da empresa, como venda com
sobrepreço ou compra de uma mercadoria a mais do que o necessário e o
fornecedor dá uma gratificação para o empregado, pode ser praticado por
qualquer um. Pelo presidente, pelo gerente ou por um almoxarife. Não se
pode limitar isso ao representante.
Qual o impacto para as empresas?
Somente o representante legal iria responder pelo crime. O sujeito
poderia, então, deixa de ser o representante legal, colocar alguém para
responder pela companhia. O crime poderia, então, ser cometido por todos
aqueles que são da empresa e não são representantes. O tipo penal vai
ser inaplicável.
O que pode ocorrer caso o projeto seja aprovado dessa forma?
Vai ser uma balbúrdia, uma insegurança total. As pessoas não saberão
se estão praticando crime. A omissão da pessoa que vê um crime, por
exemplo, seria considerada coautoria, segundo o artigo 17. Isso é
gravíssimo. Qualquer policial ou pessoa pode ser considerado coautor
porque tinha o dever de agir para evitar o crime. É uma loucura. Não tem
nexo. Foram mexer em questões delicadíssimas sem conhecimento técnico.
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