Dizem que
passarinho de cativeiro morre se for solto da gaiola. Morre nada, quem
diz-quê? Se morrer, livre lá do alto, leva menos tempo para chegar ao
céu. Afinal, que graça pode ter um pássaro atrofiado dentro de uma
gaiola, tanto para o próprio quanto para quem o vê?
Estou
convicta de que, assim como as touradas na Espanha, a cultura da gaiola
no Brasil já devia ter acabado. Confesso que gosto de soltar passarinhos
dos outros, sem que ninguém me veja. Um delito irresistível. Desde a
infância, seguramente, já libertei bem uns 80. Cheguei a comprá-los para
soltar, sem saber, ainda criança, que estava alimentando esse mercado
cruel. Para isso gastava todo o meu dinheirinho.
Pratiquei
muito e posso dizer: existem duas formas de soltar passarinho nessa
vida. A mais indicada é virar a gaiola de cabeça para baixo. O
passarinho sobe e sai, sem trauma. Mas cuidado: o bebedouro e o alpiste
podem derramar. Mas se a gaiola estiver presa ou for grande demais, aí é
na raça. Tem de ser rápido: você dá uma olhada geral, mete a mão e
torce para o pássaro se debater menos que da última vez. Negociar a
liberdade dele seria mais razoável, porém muito arriscado. Se o dono não
topar, você não vai mais poder libertá-lo sem levantar suspeitas. E
provavelmente o passarinho vai ser trancado num quartinho de castigo,
mais seguro. Duas coisas: suavidade e precisão ao agarrá-lo para não
machucar as asas, e sair de perto da cena do crime assim que botar a mão
no bicho. Depois, dê uma boa olhada nele, um carinho, levante os braços
e abra as mãos, simplesmente.
Já os
malditos poleiros de papagaios também não fazem sentido, assim como os
próprios papagaios cativos. Silvestres, são retirados dos ninhos
naturais e não se reproduzem em cativeiro, nem jamais se adaptam a ele.
Sofrem muito antes mesmo de chegarem ao primeiro dono. Mesmo assim,
soltá-los pode significar uma crueldade ainda maior. De asas cortadas ou
atrofiadas pela falta de uso, a maioria não sabe voar, sequer pousar.
Caem no chão, batem o bico, e lá ficam.
Pouca gente
sabe, papagaios vivem 50, 60 anos. Por isso acabam sempre passados para
frente ou abandonados em áreas de serviço frias e deprimentes. Eles
morrem mais de tristeza do que de maus-tratos diretos, um tipo de mal de
melancolia parecido com o banzo, que mata gente. Ganhei um de herança,
há 6 anos. A dona se mudou e não pôde levar o bibelô, que virou mala-sem-alça. Nunca imaginei ter um, sou contra. Fiquei com ele
porque tive medo do que o destino pudesse lhe reservar depois da minha
recusa. Sei que as histórias de papagaios são sempre tristes.
Como a
maioria, o meu louro teve muitos donos e desventuras. Até onde eu sei,
ele ficou três anos preso em uma gaiola de metal com pesadas correntes,
para garantir o cativeiro do condenado. Não satisfeito, o antigo dono
vinha, como se ele fosse uma galinha, abria suas asas num toco e metia o
facão. Depois ele mudou de dono e de grilhão: foi para um poleiro de
20cm por 20cm sem nunca ter sido retirado, confinado em uma garagem de
ferramentas escura, sem nenhuma janela “era o quartim”. Puxou 8 anos
nessa solitária. Quando me foi dado, o louro estava depenado, seu
pescoço estava mole, não emitia nenhum som, não reagia a nenhum estímulo
a não ser encolher-se à luz do sol. Foi quando ele conheceu o sítio.
Passou um
mês sem sair do mesmo galho, quando comecei a reabilitá-lo. Depois,
todos os dias em uma árvore frutífera diferente. A pegada das patas foi
ficando mais forte para alcançar outros galhos. Só descia às cinco da
tarde, quando esfriava, chamando alguém para levá-lo para dormir no
quentinho. Até hoje é assim. Vetei o corte das asas e das unhas, que
garantem a firmeza da pegada. Troquei a corrente por uma cordinha de
náilon. Mas percebi que atrapalhava seus movimentos e prendia nos
galhos. O resgate era sempre difícil. Depois aprendeu a pousar. Hoje ele
vive de árvore em árvore, e até se aventura perigosamente fora da
cerca, no cerrado. Volta à tardinha. Outro dia tive de procurá-lo,
desaparecido havia três dias. Por sorte estava com uma boa senhora, em
uma chácara afastada. Prova frutinhas e sementes de todo tipo. Canta
muito. Adora uma conversa. Outro dia tinha uma lagarta no bico. Fiquei
feliz porque encontrar uma fonte de proteína para o louro era uma
preocupação.
A última
coisa que fiz foi tirar o anel de metal preso à canela. Esta lhe
deformou a pata. Quando ficou completamente livre dos ferros, o louro
passou o dia todo olhando para baixo, abrindo e fechando a garra,
cantando sem parar. Aí escolhi seu nome: Garrincha, pelo gesto e pelo
defeito na canela. O nome de antes, até aquele dia, não fazia sentido.
Pavarotti. Mas recentemente descobri que o meu louro é fêmea. Ficou de
novo sem nome. Que tal a liberdade?
Fonte: O Eco – www.oeco.com.br
Autora: Carolina Mourão – 28.08.2005
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