O fim dos tempos, segundo Zizek
A visão do filósofo esloveno, excêntrico, polêmico e controvertido
15/09/2010
Aleksander Aguilar
O esloveno Slavoj Zizek se tornou uma celebridade das ciências humanas, uma espécie de pop star da filosofia. Rotulado como um dos principais teóricos contemporâneos no campo da crítica cultural e da análise de problemas da política internacional, Zizek desfruta dessa reputação, jogando o jogo que lhe foi montado, fazendo as vezes de intelectual excêntrico, polêmico e controvertido – um rol que não reduz nem o seu brilhantismo, nem a pertinência das suas idéias.
Filosofia e crítica cultural e política vinculam-se de maneira singular em seu trabalho, marcado por um estilo cheio de ironias e quase-sarcasmos. E, ao utilizar principalmente o cinema para ilustrar suas opiniões, ganhou notoriedade neste campo e se converteu em um especialista na análise da obra de David Lynch e Alfred Hitchcock. O intelectual, assim, galgou e encravou seu nome como critico de cultura. Mas é ao manter suas idéias ligadas ao horizonte do marxismo e do comunismo que Zizek firma sua importância no debate sobre a desintegração dos Estados socialistas, sobre globalização e papel da esquerda mundial. O comunismo de Zizek não tem, no entanto, nada que ver com as experiências sob este nome do século XX, senão o desafio de enfrentar, e resolver, os atuais grandes problemas da humanidade.
O fim dos tempos
Na esteira do lançamento do seu mais recente livro, ainda sem título em português, Living in the End Times, Zizek participou como um dos principais destaques do London Literature Festival e de um longo debate na prestigiosa London School of Economics (LSE), em julho na Inglaterra.
Professor da Universidade de Lubliana (Eslovênia) e diretor internacional do Instituto de Humanidades da Birbeck, Universidade de Londres, Zizek também é psicanalista e notoriamente conhecido como um especialista em Jacques Lacan, o principal seguidor de Sigmund Freud. Viveu sua vida universitária no ambiente de formação da república socialista iugoslava. Logo da independência da Eslovênia, depois da queda da União Soviética, em 1991, foi candidato à presidência da República pelo partido liberal democrático esloveno.
Com a língua presa, mas afiada, Zizek, cheio de tiques nervosos, falou para um lotado auditório do Royal Albert Hall sobre seus quatro cavaleiros do apocalipse, aqueles que em sua opinião trazem o inquestionável fim do capitalismo: a crise ecológica mundial, os desequilíbrios do sistema econômico, a revolução biogenética e a explosão das divisões e rupturas sociais. Mas a pergunta base da reflexão é: se o fim do capitalismo é visto por muitos como o fim do mundo, como a sociedade ocidental pode enfrentar este período de fim dos tempos?
“Democracia não é suficiente”, dispara. Não se se trata apenas do seu sentido conhecido de eleições pluripartidárias, de Estado de direito. Uma diferente mobilização sócio-política é o lugar onde as mudanças deveriam acontecer, argumenta. Na opinião de Zizek, há uma sobrecarga de críticas vulgares anti-capitalistas. Ao mesmo tempo, do outro lado desse fenômeno global, existem tentativas de legitimar um capitalismo ético pós-moderno que aposta em equilibrar um discurso de responsabilidade social e ecológica.
Capitalismo natural
Para o filósofo esloveno, a referência mais presente disso é o chamado “capitalismo natural”. Trata-se do conjunto de idéias para uma reinvenção do capitalismo, expostas no livro encabeçado pelo economista estadunidense Paul Hawken, que ganhou dimensão de movimento. Ele propõe uma nova revolução na produção mundial comparável com a Primeira Revolução Industrial. Como seria a economia se ela fosse organizada não através das abstrações econômicas neoclássicas, mas sim das realidades biológicas da natureza?
Para contra-atacar as negligências do capitalismo industrial tradicional para com os recursos naturais e os sistemas vivos sociais e culturais, essa teoria propõe uma mudança na abordagem da produção mundial. De acordo com os autores, há quatro estratégias centrais para se chegar a uma nova revolução industrial: a conservação dos recursos através de uma manufatura mais efetiva dos processos de produção, a reutilização de materiais na forma como são encontrados nos sistemas naturais, uma mudança dos paradigmas de valorização da quantidade para a qualidade e uma restauração e a sustentabilidade dos recursos naturais.
Porém, Zizek afirma que, apesar de parecer que tamanha redefinição de capital seja eticamente benéfica, sua implementação demandaria, como mínimo, um controle e regulação estatais muito mais estritos; com agências governamentais definindo e implementando no mercado preços de commodities naturais. A estratégia do capitalismo natural é salvar o planeta dos problemas ecológicos para que tudo se torne uma commodity. Enquanto mantém a matriz do capitalismo – o lucro expandindo suas próprias formas de reprodução – propondo a salvação disso precisamente através dessa excessiva universalização, o núcleo central do problema permanece sendo a busca pelo lucro como a razão da reprodução econômica.
E se o capitalismo busca reinventar-se, Zizek, com o humor seco e duro que marcam seu estilo, não deixa nem mesmo Antonio Negri escapar da sua crítica. O filosofo esloveno desafia o conceito de “multidão” do italiano, que se baseia nas atuais subjetividades políticas para permitir-se afirmar que basta a eliminação do já parasitário capitalismo (segundo entende Negri) para alcançar o comunismo. “Todos os exemplos convincentes de multidão que Negri apresenta são exemplos de dentro do capitalismo. Não vejo então fundamento sobre como essa idéia de multidão pode ser trazida daí para a totalidade da sociedade. Onde a multidão realmente começa a funcionar por si mesma?”, questiona.
Para Zizek, um dos pontos-chaves da principal obra de Negri, Império (que se tornou uma espécie de manifesto do movimento anti-globalização), não se justifica. A noção de Estado-nação não está desaparecendo; pelo contrário, está ficando cada vez mais forte. O que deveria ser totalmente abandonado, na percepção do filósofo esloveno, não é apenas a perspectiva dos Estados socialistas na forma da esquerda do século XX – aquilo que costuma-se chamar Estados comunistas –, mas também o chamado Estado social democrático de bem-estar.
E, para não perder a viagem, Zizek segue: “Apesar disso, eu estou com Negri contra Alain Badiou, porque meu problema com Baudiou é mesmo com a maioria dos filósofos políticos de orientação francesa, onde se inclui também Ernesto Laclau e outros. Vocês percebem como não há espaço no trabalho deles para o que Marx chama de crítica da economia política? Eles afirmam que economia não tem nada a ver com política. Nesse ponto eu concordo com Negri: a economia é a arena onde as batalhas devem ser travadas, vencidas ou perdidas”.
Nova configuração europeia
A necessidade do horizonte comunista é apontada por Zizek, por exemplo, no atual cenário da Europa Ocidental e Oriental onde há sinais de uma reacomodação política de longo prazo. Há até recentemente, o espaço político estava dominado por dois partidos principais que conseguiam atender todo o seu corpo eleitoral: uma força de centro-direita (cristãos-democráticos, conservadores-liberais) e uma força de centro-esquerda (socialistas, social-democratas).
Agora, vemos uma progressiva nova polaridade. Zizek identifica a emersão de um partido que se posiciona a favor do capitalismo globalizado, geralmente com relativa tolerância ao aborto, direitos homossexuais, religião e minorias étnicas. E, em oposição a esse partido, há um agrupamento popular anti-imigrantes cada vez mais forte, que está acompanhado diretamente por grupos neofascistas. Nesse ambiente de despolitização das administrações pós-ideológicas – que, para Zizek, conforma uma “dinâmica perigosa” –, a única maneira de mobilizar as pessoas é provocar o medo (ameaça imigrante, por exemplo).
É a partir dessa constatação que o esloveno afirma que apenas o fantasma da esquerda poderá salvar as liberdades do liberalismo que valem a pena serem salvas. “Quando debatemos com os liberais, não deveríamos dizer: 'ah, vocês são os inimigos burgueses, não discutimos como vocês!' Deveríamos, sim, alertá-los. 'Sim, nós também gostamos das suas liberdades, mas apenas uma esquerda bem estabelecida em longo prazo irá ajudar a salvar os aspectos dessas liberdades que valem a pena. Se não for assim, vocês irão perder cada vez mais espaço para a extrema direita'”.
Apocalipse ecológico
O outro sinal desse fim dos tempos, a crise ecológica mundial, é também analisado por Zizek como um aspecto que pode ser considerado cínico na nossa realidade. O discurso de fazer a nossa parte está permeado de cinismo e pode tangenciar os grandes problemas causados pelas grandes empresas com a retórica do “consumo responsável e sustentável”. “Toda idéia de reciclar o lixo, poluir menos..., tem algo de superstição. É como olhar a Copa do Mundo e estar em frente à TV gritando incentivos aos jogadores. Sabemos que é absolutamente insignificante, mas ainda assim o fazemos”, compara.
Para Zizek, os problemas que o mundo enfrenta hoje não podem ser apenas tratados pelo “capitalismo melhorado”, ou natural, nem pelas instituições democráticas. Nesse sentido, ao fazer referência aos problemas comuns da humanidade, é que comunismo ainda deve ser utilizado. “Coisas tremendas precisam ser feitas. Tomemos como o exemplo, muito factível, o vulcão na Islândia. E se a explosão tivesse sido tão grande ao ponto de todo o território islandês tornar-se inabitável? Não teríamos mecanismos para resolver o que fazer com a sua população. Para onde iriam? Deveriam se dispersar por todo o planeta? Os deslocamentos de grandes grupos humanos, por conta das mudanças na natureza, são questões presentes e altamente complicadas para as quais não temos respostas”, provoca.
Isso é o que Zizek quer dizer com comunismo. O Estado liberal, no seu atual sentido jurídico-legal, com parlamento e Estado de direito, não é suficiente. “Eu não me refiro à volta do camarada Stalin. O comunismo do século XX foi uma das maiores tragédias da história. Eu apenas afirmo que nós estamos enfrentando problemas para os quais o capitalismo não é suficiente. Estou preparado para ser parte desse legado histórico da esquerda que se move um passo adiante da democracia”. Eis a reflexão chave do fim dos tempos, segundo Zizek: o espaço da sociedade como conhecemos está para terminar e é tempo para interpretações mais radicais.
Aleksander Aguilar é jornalista, licenciado em Letras e mestre em Estudos Internacionais.
Entrevista de Zizeg no Programa Roda Viva da TV Cultura de SP:
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