Estudo feito com ratos aponta efeitos prejudiciais do consumo de
alimentos geneticamente modificados. Em sua coluna de setembro, Jean
Remy Guimarães comenta a pesquisa, divulgada nesta semana, e seus
desdobramentos.
Jean Remy Davée Guimarães
Jean Remy Davée Guimarães
Cientistas
franceses testaram em ratos os efeitos do consumo do milho transgênico
desenvolvido pela Monsanto para ser resistente ao herbicida Roundup,
também produzido por essa empresa. (foto: Sxc.hu)
A sisuda revista norte-americana Food and Chemical Toxicology, uma referência em toxicologia de alimentos, publicou nesta semana os resultados de um estudo realizado pela equipe do francês Gilles-Éric Séralini, professor de biologia molecular na Universidade de Caen (França), que coloca em xeque a segurança dos alimentos transgênicos.
Os pesquisadores observaram, durante dois anos, 200 ratos alimentados
com milho transgênico OGM NK603 e água contendo o herbicida Roundup,
ambos produzidos pela empresa Monsanto, e mediram mais de cem parâmetros
diferentes. Foi a primeira vez que uma equipe de pesquisa acompanhou
efeitos de transgênicos por um período tão longo – algo bem diferente do
que os estudos de três meses realizados pelos próprios fabricantes para
atestar a inocuidade de seus produtos e obter autorização de
comercialização por parte das agências reguladoras.
Os 200 ratos foram divididos em 10 grupos de 10 fêmeas e 10 machos
cada. Seis dos grupos receberam diferentes doses (11% a 33%) do milho
desenvolvido pela Monsanto para ser resistente ao herbicida Roundup. O
milho oferecido a alguns dos grupos havia também sido pulverizado com
Roundup no campo. Três outros grupos receberam água com diferentes doses
de Roundup, sendo a menor delas compatível com a concentração do
composto presente na água de torneira nos Estados Unidos, segundo os
autores do trabalho. O grupo controle e natureba recebia água potável
sem Roundup e comia milho não transgênico.
Todos os ratos expostos ao herbicida e/ou ao
milho transgênico começaram a desenvolver pesadas patologias e morreram
mais cedo que os ratos do grupo controle
Todos os ratos expostos ao herbicida e/ou ao milho transgênico
começaram a desenvolver pesadas patologias a partir do 13º mês da
experiência e morreram mais cedo que os ratos do grupo controle. Nas
fêmeas, apareceram tumores mamários em cadeia que chegavam a atingir 25%
do peso corporal. Já nos machos, foram órgãos como fígado e rins que
apresentaram anomalias facilmente notadas ou severas, cuja frequência
foi 2 a 5 vezes maior que nos ratos submetidos ao regime natureba.
No 24º mês, ou seja, no fim da vida dos ratos, de 50% a 80% das
fêmeas expostas ao milho transgênico apresentaram tumores, contra apenas
30% das fêmeas não expostas. Um ano de vida de um rato equivale a cerca
de quarenta anos da vida de um humano. Portanto, é como se um estudo
com 200 humanos tivesse sido realizado do nascimento aos 80 anos.
O problema é o ‘se’. Não há qualquer estudo dessa natureza e duração
com humanos. A rigor, os ratos deveriam então ficar mais preocupados do
que nós, certo? Há controvérsias. Afinal, se não há estudo controlado,
independente e de longa duração que comprove a segurança dos
transgênicos para os humanos, então somos todos ratos. Sem ofensa – digo
ratos no sentido de ‘cobaias’. Já estamos consumindo alimentos
transgênicos há algum tempo, e a rotulagem (ou não) e visibilidade (ou
não) do logo na embalagem, indicando a presença de transgênicos no
produto, foi e continua sendo objeto de cruentas batalhas judiciais.
Questionamentos
A revista Food and Chemical Toxicology é indexada em
inúmeras bases de dados bibliográficos e os trabalhos ali publicados são
previamente submetidos ao crivo de revisores anônimos, que são
cientistas do ramo e declaram não ter conflito de interesses na questão
ou relação próxima com os autores. Suponho que, nesse caso, devido à
inevitável exposição midiática que o tema suscitaria (leia matérias
publicadas no Le Monde, Le Nouvel Observateur, The New York Times e The Scientist), três a quatro revisores tenham sido requisitados.
Ok, a revista é séria e o estudo foi longo. Mas é um só e, como
qualquer estudo, não é inquestionável. E os questionamentos chegaram em
velocidade recorde: a linhagem de ratos utilizada seria mais suscetível a
desenvolver tumores que as demais; a estatística teria deixado a
desejar; não teriam sido medidos todos os parâmetros relevantes; se
transgênicos fossem tão perigosos, os norte-americanos já deveriam todos
ter caído fulminados; e por aí vai.
Outra questão é que deveria haver também uma clara relação entre as
doses de Roundup consumidas e seus efeitos, o que não ocorreu, já que o
estudo mostrou nesse caso que o fator determinante foi a exposição ou
não ao herbicida e que as baixas doses provocavam efeitos semelhantes
aos das altas doses. Os próprios autores concordam que essa relação
entre dose e efeito é o que se espera de substâncias que são disruptores
endócrinos, como sugerido pelo tipo de efeito observado no estudo.
Mas esse padrão esperado também não condiz com o aparecimento dos
efeitos a partir da exposição isolada ao milho transgênico. Segundo os
pesquisadores, a explicação para esse fato é que a construção genética
dessa variedade patenteada de milho reduziria a produção de uma enzima
responsável pela síntese de aminoácidos aromáticos que têm efeito
protetor contra a cancerização.
Sigilo total
A história da pesquisa é digna de um filme de suspense e se
desenrolou de forma tortuosa. As espigas do milho transgênico patenteado
NK603 foram obtidas numa escola agrícola canadense em 2007 e exportadas
para a França como sacos de juta. A preparação da comida dos ratos
correu em total segredo e os próprios técnicos envolvidos nessa e em
outras etapas do estudo não conheciam o verdadeiro objeto da pesquisa.
O projeto foi chamado de In vivo. Os e-mails trocados
pelos pesquisadores entre si eram tão criptografados quanto os do
Pentágono, não havia conversas telefônicas sobre a pesquisa e, para
desviar a atenção, ainda anunciaram um estudo fajuto sobre tema
correlato – assim como fazem os peões pantaneiros, que lançam um boi
velho às piranhas enquanto o resto da manada cruza a água em segurança.
Os cuidados se justificavam pelo arsenal que a indústria da
biotecnologia agrícola exibe para calar vozes dissonantes. Basta lembrar
que o nosso Ministério da Agricultura(!) já processou o nosso
Ministério da Saúde(!) para impedir que este realizasse testes
toxicológicos com pesticidas proibidos na maioria dos países civilizados
mas ainda em uso no Brasil.
O estudo francês também sofreu críticas por sua divulgação coincidir com o lançamento – previsto para 26/9 – do livro Todos cobaias, escrito pelo principal autor da pesquisa, e ainda de um filme de mesmo nome dirigido por Jean-Paul Jaud, que já havia realizado outro filme sobre o tema, Nossos filhos nos acusarão.
Bruce M. Chassy, professor emérito em ciência de alimentos na Universidade de Illinois (Estados Unidos), declarou por e-mail: “Isso não é uma inocente publicação científica, é um evento midiático bem planejado e espertamente orquestrado”.
É verdade, professor, não existem publicações inocentes, nem
cientistas inocentes. A não ser, talvez, aqueles que creem que as
indústrias nos contam tudo sobre seus produtos, não compram apoios
científicos, políticos e midiáticos e não tentam calar os eventuais
dissidentes, estejam onde estiverem. (Para apimentar esse debate,
recomendo o imperdível livro O mundo segundo a Monsanto, de Marie-Monique Robin.)
O estudo da equipe do prof. Séralini custou a bagatela de 3 milhões
de euros e foi financiado pela Fundação Charles-Léopold Mayer (Suíça),
pela associação Ceres (que reúne notadamente as grandes redes francesas
de varejo alimentar como Carrefour e Auchan – que interessante), pelo
ministério francês de pesquisa e pelo Comitê de Pesquisa e de Informação
Independentes sobre Engenharia Genética (Criigen), entidade francesa
que milita contra as biotecnologias.
O estudo torpedeia uma verdade oficial: a segurança do milho e outros alimentos geneticamente modificados
Seja como for, o estudo é uma bomba de fragmentação política,
científica, sanitária e industrial. Torpedeia uma verdade oficial: a
segurança do milho e outros alimentos geneticamente modificados. E
reacende desde já a briga entre os defensores e os detratores dos
transgênicos, que doravante se dividirá nos períodos pré e pós estudo da
equipe do prof. Séralini.
Em tempo: entrevistado pelo jornal FrancesLe Monde,
o prof. Séralini afirmou que, ao contrário do que ocorre com os dados
brutos de estudos dos fabricantes, protegidos por conveniente segredo
industrial, aqueles de sua pesquisa serão colocados à disposição da
comunidade científica, dando assim a todos, incluindo os críticos do
estudo, a oportunidade de analisá-los a seu bel prazer.
Não sei se o prof. Séralini é culpado de algo ou não, mas com certeza ele não é um inocente.
Talvez você esteja se perguntando: e as tais festinhas do título? São
as viagens luxuosas, as recepções e os banquetes para os quais o prof.
Séralini não era convidado. E continuará não sendo.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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Tecnologia | 150 | 30/09/2012 - 18h | 13662 | Ricardo Alvarez |
Dossiê
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